Minha vida em duas malas!

À porta da sala de embarque reflito sobre a minha decisão de imigrar para o Canadá. Os motivos, os perrenques, as coisas deixadas para trás… tudo o que envolveu essa grande mudança, desde a desistência da busca por  uma carreira profissional sólida até a adaptação a uma nova dinâmica social, cultural, climática e pessoal. Penso sobre o que perdi e vou perder e sobre o que estou prestes a ganhar. Penso na saída da zona de conforto, em busca de crescimento, de um recomeço e enfim, de imigração.

Hoje, crio um novo marco na minha vida… será contabilizada como antes e depois de hoje; tenho consciência de que essa decisão já me fez novo e vai impactar em tudo o que vier… não se entra nessa aventura sem saber que vamos sair dela diferentes.

***

Bom, o fato é que empacotei minha vida em 2 malas! Minha vida cabe em 2 malas! Pensei em  tudo aquilo que não acumulei e no final sobraram  2 malas…

Aos 34 anos, algumas árvores plantadas, um casamento, uma filha e um livro publicado, vou rumo ao norte gelado ( Canadá ) com essas bagagens que logo abaixo descrevo para que melhor entendam:

Mala 1: Enchi essa mala com a minha infância. Anos felizes, que até que eu completei 9 anos não me lembro de sequer um dia triste. Mudávamos, fruto do trabalho do meu pai. De ano em ano um lugar novo e assim conheci várias cidades, escolas e pessoas no sul das Minas Gerais. Não havia violência nem dentro e nem fora de casa. Tudo era pueril, como a idade pede e precisa que seja. As partidas de futebol nos campinhos, os campos ao redor da cidade, os meus primeiros animais de estimação. Os amigos do bairro, as brincadeiras de rua…a rua. Aos 9 anos, ao som da notícia da morte da minha avó materna, conheci as lágrimas verdadeiras. Passou rápido no entanto; ficou apenas a imagem do meu pai de terno escuro em um dia de sol, explicando o que então era inexplicável; e que talvez ainda seja… Mala bonita, leve, com rodas suaves e fácil de carregar… a minha infância não pesou nem os 32 kg permitidos!

infancia

Mala 2:  Nessa segunda mala quase não coube minha adolescência. Um pouco mais de peso, tentando ajustar nela os anos em que nos ajustamos às novas ideias, aos novos sentidos, aos novos hormônios. Há, na adolescência, uma força descomunal que nos desgoverna; a força da descoberta. Queremos ser algo, ser tudo… queremos a paixão viciante do primeiro amor… queremos ser parte de uma turma, nem que seja da turma dos que não tem turma… vivemos essa contradição maluca que mora entre a força e a imaturidade e que nos faz achar que sabemos tudo e que nada pode nos derrotar. Essa mala pesa, pois nela eu incluo todos os meus erros juvenis; todos meus desatinos hormonais; todos os meus desacertos com meus pais. Essa mala também tem espaço para o bom, o belo e o novo. As amizades forjadas ao eterno, os amores deliciosamente fugazes, as montanhas vencidas, o cheiro do mar, o pôr e o nascer do sol… prazeres intermináveis que começaram ali. Acho nessa mala um fundo falso, onde aperto e encaixo o tempo da faculdade. Uma extensão da adolescência, quase uma prorrogação da irresponsabilidade saborosa daqueles anos. Um pouco de cada; jovem e adulto decidindo quando assumir que a parte mais séria da vida batia à porta. Fecho essa mala com dificuldade mas carrego sem culpa, sabendo que muito foi feito à luz borrada da tentativa e erro, que nos ensina no fim, mas não sem antes nos dar grandes lições.

Despachei as duas malas grandes com saudade e com a certeza de que poderei abrí-las sempre que quiser e olhá-las com o carinho habitual. Agradeci por ser permitido ainda a levar junto comigo, nesse avião incrível, uma pequena mas importantíssima bagagem de mão.

É nela que colocamos as coisas das quais precisamos na nossa chegada. É alí que ponho o “link” de todas as boas lembranças; assim sei o que tem em cada mala despachada. Depositei no seu interior toda a minha fé, reunida pelos dissabores e seus desfechos, pelas pequenos milagres cotidianos, pelos não entendidos providenciais e pelas estradas abertas onde não havia caminho; e pela presença silenciosa de Deus, sempre ao meu lado.

Cabem também, e não poderiam faltar, os meus familiares e amigos que lembro com ternura. Pessoas especiais que a vida se encarregou de colocar no meu caminho e que ensinaram tanto… deixaram suas marcas profundas, me surpreenderam e me mostraram que há um amor suave na amizade sincera, despida de interesses escusos. Olho para todos eles e esboço um sorriso nostálgico, na certeza de que torcem por mim assim como eu por eles; que me querem bem assim como eu a eles; que me esperam rever assim como espero revê-los. Espero encontrá-los não por que a presença seja necessária, mas sim por que quero olhá-los nos olhos mas uma vez e dizer, a despeito de tudo o que deu certo, o quanto a lembrança de suas amizades, palavras e ações me salvaram nos momentos em que achei que não havia mais ninguém. 

* “Senhor Luciano Gouvea, por favor dirija-se ao portão de embarque… entendo que focamos sempre no destino, porém sinto que um dia vamos entender que toda a alegria estava presente enquanto  caminhavávamos…  não há destino ruim para quem entende que o que importa é a viajem”.

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Luciano Gouvea

Autor de Shekinah e Coração Tuaregue

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