O galho da goiabeira

Quando eu era criança, disseram-me que o galho da goiabeira era o melhor material para fazer um estilingue; infelizmente, não me lembro o autor dessa valiosa dica. Mas, do alto dos meus 12 ou 13 anos, empreendi uma pequena jornada  em busca da única árvore capaz de produzir um estilingue de qualidade.

Segundo o esquecido sábio, o galho da goiabeira reunia tanto a flexibilidade quanto a robustez necessárias para confeccionar a atiradeira perfeita.

A felicidade me acertou quando encontrei uma reunião das tão desejadas goiabeiras, mas ainda havia um caminho a percorrer. Qual ângulo era o correto? Qual a grossura do galho que era a ideal? Podia ser um pouco torto de um dos lados? Essas respostas nem o sábio sabia. Eram fruto da experiência de fazer um estilingue e testá-lo.

Tendo apanhado um dos galhos, mais ou menos grosso, mais ou menos torto, cortava-se no tamanho pretendido, raspava-se a casca até alcançar a madeira. Um artesanato primitivo que me consumia horas; sem pensar em desenhos, sem pensar em tablets, sem pensar em videogame.

Eram horas em busca de algo meu, feito por mim. Acabado o trabalho com a madeira era a hora de ir à farmácia para comprar a “goma de mico”, aquela borracha que prende o braço quando temos que tomar uma injeção. Comprada a borrachinha, era a hora de ir ao sapateiro e pedir uma sobra de couro para finalizar o brinquedo.

Ao fim do dia, lá estava um brinquedo primitivo, feito à mão, à minha mão. Eu aprendi sobre o ângulo do galho da gioabeira, sobre a utilidade da borrachinha e sobre o couro. Aprendi que posso fazer algo e que, quando esse algo era feito por mim tinha mais valor. Aprendi sobre o tempo e o trabalho; aprendi que aquele brinquedo eu queria guardar pois me consumiu um dia inteiro para produzí-lo. Aprendi.

Anos mais tarde vi que as lojas vendiam estilingues prontos. De borracha e de couro sintéticos. Brinquedos sintéticos para crianças sintéticas.

No último dia das crianças, comemorei também a minha infância. Tirei a minha filha e meu afilhado de casa, de-sintetizei-os. Guardei o videogame, disse que o tablet estava sem bateria e levei-os para procurar o tal galho de goiabeira.

Disse-lhes, que iríamos fazer um brinquedo e não comprá-lo. Passei perto da loja e de longe vi o estilingue sintético acenando para mim, quase que me dizendo: “compre-me, você terá mais tempo para fazer outras coisas; as crianças vão gostar do mesmo jeito”.  Resisti. Levei os dois pequenos para procurar o dito cujo.

Andamos, aproximamo-nos de algumas árvores e mostrei-lhes por que elas não serviam para o nosso propósito. Não tinham a flexibilidade e a robustez necessárias para o estilingue. Estava quase desistindo quando, na beira do rio, avistei, meio sem querer, talvez a última das goiabeiras. Digo última, por que na minha infância elas eram várias, e agora só consegui achar àquela. Pequena, torta, envolta por plantas parasitas; parece que tais plantas queriam escondê-la e assim guardá-la só para elas. Mas eu a vi. Chamei as crianças e expliquei a teoria dos ângulos e sobre as características. Cortei os galhos e sem perceber, comecei a talhá-los. Levei horas para finalizar o esboço do estilingue. As crianças, mesmo ajudando no que podiam, a toda hora perguntavam: – Está pronto?

Quando acabei, dei um estilingue para cada uma das crianças e levei-os para testá-lo; não sem antes colocar as regras de um mundo politicamente correto.

1-Não atirem nas pessoas;

2-Não atirem nos animais.

E passamos uma tarde incrivelmente nostálgica, brincando na areia e jogando pedras no rio como o estilingue feito por nós. Percebi que as crianças não são assim tão diferentes. Nós que as moldamos para que fiquem em casa, a nossa vista, sem nos incomodar. Afinal, de outra forma teríamos que brincar com elas, que sair de casa? Seria muito incômodo para nós. Se é verdade que já não há tantas crianças nas ruas, também não se vê tantos pais ensinando seus filhos sobre o galho da goiabeira.

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Luciano Gouvea

Autor de Shekinah e Coração Tuaregue

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